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  • Juliana Rocha

Capítulo IV

Atualizado: 19 de jul. de 2019

Cara leitora, ou caro leitor, se alguma vez você já se achou a pessoa mais trouxa ou a mais iludida nessa vida, espera até o final desse capítulo pra você me dizer se não mudou de ideia...


 "Richard" e eu tivemos nossos quatro primeiros encontros em apenas sete dias. No encontro de número quatro, ele fez todo um discurso sobre ser um espírito livre, que não se prende a nada, a ninguém nem a lugar algum. Contou que viveu longe dos pais dos catorze aos vinte e um anos. Vinha visitá-los no Rio de Janeiro quase todo ano, geralmente quando entrava de férias do Ensino Médio ou da faculdade. Também me contou que desde seu primeiro relacionamento sério, que durou os dois primeiros semestres da sua graduação, nunca mais havia tentado se relacionar com pessoa alguma dentro dos moldes de um namoro tradicional. Quanto maior se tornava sua necessidade de se sentir livre, maior era a sua aversão a relacionamentos sérios, fechados, monogâmicos, com regras rígidas e expectativas afetivas e sociais pré-estabelecidas. Enfatizou que essa forma de se relacionar não condizia com a sua natureza, mas que, por outro lado, não era um cara como o seu amigo Daniel que, além de machista, se utiliza da desonestidade para usar as mulheres para o seu prazer e descartá-las quando lhe é conveniente.


 "Richard" se apresentou como um indivíduo desconstruído demais para embarcar em relações tão rasas. Olhou nos meus olhos no quarto encontro e explicou que já nos considerava "amigos com benefícios" e que, embora a palavra amizade do termo "amizade colorida" seja vazia de significado para muitos caras, especialmente para os Daniéis da nossa sociedade, ele ("Richard") considera que é justamente a amizade o que faz tudo valer a pena. Garantiu que nele eu teria um amigo de verdade, mesmo que eu achasse papo furado no primeiro momento. E durante os dois, três meses seguintes, ele me provou que eu estava errada ao duvidar da sinceridade do seu discurso. Parecia mesmo que eu estava ficando com o meu melhor amigo! A gente sempre comentava que nossa sensação era de que nos conhecíamos há muitos anos! Mas, como vocês já sabem, depois que ele teve a certeza de que me tinha na palma da sua mão, ele foi mudando do vinho para a lama.


Se, por um lado, ele insistia nessa história de espírito livre que não se amarraria a ninguém, por outro lado, nos nossos três primeiros meses juntos ele fazia comentários que me levavam a acreditar que aos poucos ele estava baixando a guarda pra mim. Hoje eu tenho plena certeza de que esses comentários foram friamente elaborados e calculadamente inseridos nas nossas conversas como estratégias, as quais tinham por objetivo fazer com que eu baixasse minha guarda também e ficasse cada vez mais emocionalmente envolvida.

            

Lembro como se fosse hoje quando ele, com muita doçura, me pediu para ter paciência com ele, para a gente ir devagar, apesar da intensidade dos nossos sentimentos, porque fazia muito tempo que ele não se relacionava dessa maneira, saindo com a mesma mulher tantas vezes seguidas num espaço curto de tempo. Ele admitiu estar surpreso com o quanto estava gostando de sair com uma garota fixa. Até brincou que eu o enfeiticei, e nós rimos. De modo bem nerd, mas também super fofo, comparou nossa relação com um par de sapatos novos: inicialmente machucam seus pés, mas não se trata de algo ruim; simplesmente faz parte do período de adaptação. Era só uma questão de paciência, que logo os sapatos se tornariam confortáveis! Que poético, não acham?

             

Para alguém que não queria namorar, interpretei como uma luz no fim do túnel ele externalizar seu otimismo quanto a se adaptar a ideia de me permitir fazer parte da sua vida. Duas semanas depois da analogia com os sapatos novos, saiu da boca dele mais um comentário semeador de esperança. "Richard" comentou que foi muito bom ter pintado um bico pra ele fazer em Angra dos Reis como intérprete em um grupo só de turistas gringos, porque assim ganharia uma grana extra e com esse dinheiro poderia levar a garota dele pra jantar num lugar legal.


 — With that money I'll finally be able to take my girl out to dinner in a nice place!— ele disse olhando pra mim, todo empolgado e cheio de orgulho, com um sorrisão no rosto, enquanto andávamos de mãos dadas pela rua.


 Como me marcou  o "Richard" ter se referido a mim como my girl! Lembro muito bem disso, sabe, bem até demais, como se ele estivesse agora mesmo na minha frente proferindo aquelas mesmas palavras com a mesma animação, expectativa e satisfação. Lembro até mesmo da mão dele apertando a minha mão mais forte no exato momento em que me chamou de sua garota.


Outra fala dele que me marcou aconteceu durante a conversa em que lhe contei que eu iria passar uma semana no Chile e duas na Colômbia durante minhas próximas férias e que as passagens estavam compradas desde muito antes de conhecê-lo. Já fui pedindo para que não ficasse chateado comigo e ele, por sua vez, se apressou em dizer que, na verdade, achava isso uma notícia incrível e que, mesmo fisicamente distantes, estaríamos em contato e eu iria poder compartilhar momentos legais da viagem com ele via whatsapp. Bem, durante minha viagem ele foi mais frio e grosseiro do que nunca e inventou outras mentiras que só fui descobrir muito mais tarde, mas isso é história pra outro capítulo! O foco agora é continuar contando pra vocês essa conversa sobre a futura viagem por causa de uma fala específica que me marcou.    

   

 — Dear, a única coisa relacionada a essa viagem que poderia me deixar chateado é você voltar pro Brasil sem um cartão postal pra mim de cada cidade que você visitar!


 — Ah, mas isso já é certo que vou trazer pra você, baby! Eu já tinha pensado nisso: sempre que eu for comprar um postal pra mim, escolher um pra você e pra uma das minhas melhores amigas que também coleciona cartões postais que nem a gente!

             

Comecei a contar pra ele como nasceu a minha amizade com a Pamela, que é chilena, e o quanto eu estava feliz com a ideia de revê-la, conhecer sua família e ter sua companhia para conhecer Santiago, Viña Del Mar e Valparaíso. Ele me contou um pouco sobre sua própria viagem ao Chile e falou sobre o quanto foi bom surfar numa praia próxima às de Viña. Em seguida, me perguntou:

              

—Você já contou pra essa sua amiga Pamela que você agora tem um namorado e que você deveria levá-lo com você? Pode me carregar até mesmo na mala! Fala pra ela arranjar um espacinho na casa dela pra mim! Pode ser até na casinha do cachorro!

              

Eu até ri da piadinha dele, mas ri de nervoso! Afinal, ele havia acabado de se referir a si próprio como meu namorado!!! Como assim!? É óbvio que esse comentário não passaria despercebido e teria algum tipo de impacto sobre mim!

             

 —E você agora é meu namorado? — perguntei fingindo serenidade.

             

 — Ah, você sabe. Praticamente sim, mas não exatamente um. Não dê importancia pra rótulos, dear. Rótulos são como grilhões que aprisionam, limitam... não deixam florescer algo tão especial e sincero.

              

Essas pequenas sinalizações no discurso dele sobre o status da nossa relação me inundavam de felicidade! Como eu fui cair nessa!? Hoje está tão claro para mim que esse embuste fazia todos esses comentários fofos de caso pensado. Ele queria que eu acreditasse no quanto eu era especial pra ele! Estava sim me dando falsas esperanças! Não digo falsa esperança de que viríamos a namorar como num namoro padrão tradicional. A esperança que ele alimentava era de que nossa amizade colorida era próspera e muito mais saudável, mais evoluída e mais real do que muitas relações por aí em que o casal se apresenta pro mundo como namorados, se expõem em redes sociais, mas na prática cerceiam a liberdade e reprimem — ou até mesmo anulam — a individualidade um do outro. Ele me contou que, durante aquele único namoro tradicional que teve, começou a sentir que estava emburrecendo, que não conseguia analisar o mundo à sua volta sob uma perspectiva sagaz. Sua capacidade para refletir e ponderar tornou-se estéril e sua mente ficou improdutiva. Começou a perder seu senso de identidade. E por tudo isso terminou com a garota e prometeu a si mesmo que nunca mais repetiria as mesmas condições de relacionamento, que não se permitiria chegar àquele estado de novo.

              

Eu super entendi seu ponto de vista. Eu também não gostaria de chegar àquele ponto. As pessoas não devem ficar juntas se for pra subtraírem na vida uma da outra. Por mais problemas que o casal tenha que enfrentar, o saldo precisa se manter positivo. Se não for pra somar, é melhor a gente ficar só do que mal acompanhado, não concordam comigo? O "Richard" tentou me mostrar o quanto eu estaria sendo hipócrita se eu aparentasse ser uma pessoa mente aberta, de pensamento desconstruído, mas, no fim das contas, minhas escolhas na vida se revelassem baseadas em valores arcaicos e retrógrados. E foi assim que ele acabou me convencendo que a espécie de relação pós-moderna que ele estava me oferecendo era o que eu deveria querer também. Depois de muito refletir e ter confirmações sutis de que a nossa relação tinha mais sentimento, verdade, parceria e cumplicidade do que muitos namoros por aí, decidi embarcar na proposta e ver onde ela iria dar.

              

À propósito, foi ele mesmo quem pediu para conhecer meus pais e adorou o convite para ir jantar na minha casa. Gostou tanto da primeira vez que até tornou suas idas à minha casa um hábito. Obviamente ele não se apresentou aos meus pais como meu namorado. Apenas apresentou-se como "Richard". Minha mãe já estava ciente de que se tratava de uma amizade colorida e, antes de conhecê-lo, estava desconfiada que ele pudesse se revelar mais um embuste atraído pelo meu "dedo podre", entretanto, ela aceitou conhecê-lo mais por curiosidade, porque sabia que eu nunca quis apresentar nenhum ficante pra minha família. Nem mesmo o meu ex-namorado chegou a entrar na nossa casa. Esse ex até conheceu minha mãe na época, mas nunca conheceu meu pai, afinal, eu tenho uma relação bem conturbada com o meu progenitor e prefiro que ele não saiba o que faço ou deixo de fazer na minha vida pessoal. Por isso minha mãe ficou surpresa com o fato de eu não ter colocado obstáculo algum no pedido do "Richard" para conhecer minha família. Suponho que ela imaginou que eu devia estar mesmo gostando dele.

              

Minha mãe ficou ainda mais surpresa quando ela própria, a pessoa mais desconfiada do mundo, que fez da frase "Galinha que come merda eu conheço pelo bico" o seu lema pessoal, encantou-se pelo "Richard" logo de cara. Ela o achou o garoto mais educado que conheceu em seus 60 anos de vida. Achou um charme ele falando português com sotaque de americano. Abria logo um sorriso quando ele a chamava de Dona Bebel. Ainda passou a defendê-lo quando eu lhe contava que estava chateada com ele por coisas como o show que ele deu online por eu andar chamando-o de baby.     

              

— Mas Juliana, você tem 30 anos! Ele ainda tem 25! — disse minha mãe. — Você não pode exigir uma maturidade que rapazes da idade dele não têm ainda. O que importa, minha filha, é que ele é um menino de bom coração. Eu tenho intuição pra essas coisas. Você sabe disso. Tenta ser um pouquinho mais paciente com ele.

              

Mal sabia minha mãe que a intuição dela havia falhado dessa vez. Essa "galinha que come merda", ela não reconheceu "pelo bico". Sinceramente, acredito que esse embuste nunca se sentiu mal, muito menos arrependido, por ter fingido adorar a "Dona Bebel" que, por sua vez, se sentiu enganada, traída e decepcionada quando a máscara dele caiu.


Motivo #05: Ricardo Ernesto envolveu minha família em sua farsa. Quis conhecer meus pais e frequentar nossa casa sabendo que estenderia sua desonestidade para o meu seio familiar e que poderia magoar minha mãe, uma senhora que é dona de um coração enorme — ela sim tem bom coração — e que sempre o tratava com muito carinho e o mimava com lanchinhos e até mesmo doces para levar pra casa. No fim, ele a decepcionou e a deixou arrasada. Foi muito doloroso pra ela também ver sua filha emocionalmente devastada quando a verdade começou a vir à tona.

              

Minha mãe até hoje se sente culpada por ter apoiado essa relação e por não ter percebido o mau caráter mitomaníaco que ele era. Mãe, você não tem culpa de nada. Sua intuição não funcionou com ele porque o Ricardo Ernesto é o melhor dos atores. Pena que ele não gosta de trabalho fixo, prefere mesmo ficar na aba dos outros. Poderia estar trabalhando nas novelas da Globo. Um desperdício de talento.

              

Quanto à família dele, eu não a conheci enquanto estávamos juntos. Se hoje a Elisabeth, irmã dele, é uma das minhas melhores amigas, não é porque ele um dia a apresentou para mim, e sim porque no dia em que desconfiei pela primeira vez que ele estava mentindo sobre um assunto gravíssimo, a busca pela verdade me levou até ela. Mas isso também é história pra um outro capítulo.

             

Quando pediu para conhecer meus pais, "Richard" logo se pôs a explicar por que eu não conheceria os pais e irmãos dele naquele momento e talvez nem mesmo num futuro próximo.  O problema, segundo ele, é que seus pais são muito religiosos e extremamente conservadores. Fez, inclusive, questão de destacar que seu pai é professor universitário de Teologia. Explicou que seus pais são do tipo que se o filho lhes apresentar uma garota, eles vão achar que, se está namorando, é pra já começar a pensar no casamento e vão pressioná-lo para que ele conduza o relacionamento do modo mais tradicional possível, o extremo oposto de como ele considera que um relacionamento deve ser. Eu entendi o ponto de vista dele, porque eu mesma não iria achar confortável que os pais de um namorado meu colocassem toda essa pressão e expectativa descabida de casamento em cima da gente e impusessem talvez até mesmo regras na minha relação com o filho deles.

             

Não é que eu não quisesse conhecer a família do "Richard". Queria muito, especialmente seus irmãos. Mas realmente não precisava ser tão cedo, ainda mais com os pais sendo da maneira como ele descreveu. Me dei por satisfeita que ele mesmo propôs conhecer meus pais, e na minha cabeça isso já demonstrava comprometimento o suficiente da parte dele para comigo. Que ilusão a minha!


Motivo #6: Ele criou desculpas para não me apresentar a sua família.

No final do nosso terceiro mês juntos, já indo pro quarto mês, quando ele já estava mudado do vinho pra lama, tivemos uma briga muito feia que gerou uma das conversas mais decisivas que impactaram nossa relação, seja pra melhor, seja pra pior. Ele apareceu na minha casa às oito da noite de um sábado, embora tivesse dito que nesse dia estaria trabalhando de quatro da tarde até as dez da noite no quiosque do pai de uma amiga na Praia da Barra da Tijuca, próximo ao posto onde costumava surfar. Já chegou dizendo que tinha sido liberado mais cedo do trabalho, o que me pareceu estranho, mas deixei pra lá e foquei no lado positivo da situação: ele apareceu na porta da minha casa apenas dois dias depois da briga aparentemente disposto a consertar as coisas.

             

Eu estava sozinha em casa. "Richard" entrou e nos sentamos no sofá da sala. Ele começou dizendo que reconhecia que a sua preocupação e estresse com a escrita da dissertação do mestrado estava gerando situações desagradáveis para mim. Falou que sua situação financeira também estava contribuindo para deixá-lo uma pilha de nervos.

            

 — Jules, eu preciso pegar um bico aqui como intérprete pra turista, um outro ali como professor particular de inglês, mas o que mais rola com frequência é o bico de atendente no quiosque da praia, e você sabe que lá eu ganho míseros 50 reais pra trabalhar por seis horas. Mesmo sendo pouca grana, eu vou porque preciso do dinheiro, mas por outro lado minha consciência pesa porque é tempo que eu poderia estar usando pra me dedicar ao mestrado. Percebe como a vida não tá fácil pra mim? E aí quando você reclama que pareci grosseiro, frio e distante por mensagem, ou afirma que tô dando desculpa pra gente não se ver, fala que tô te enrolando e te deixando chateada, você torna as coisas ainda mais difíceis pra mim. Você também me magoa com as suas cobranças e suposições. Se o teu medo é que eu possa ter deixado de gostar de você, é um medo sem fundamento, dear. Ei, olha pra mim! Eu te amo! Eu estava com medo de deixar essas palavras saírem da minha boca, mas me deparar com esse medo nos teus olhos é muito pior. Pronto, agora está dito! Finalmente falei. Eu te amo, Jules, e eu quero você como parte da minha vida. Mas também não quero continuar aturando reclamações e cobranças. Nesses últimos dois dias eu refleti muito e cheguei à conclusão de que a melhor solução é a gente dar um passo pra trás.

            

Ele percebeu que eu arregalei os olhos na hora. Eu já estava nervosa e com medo do resultado dessa conversa. Quando ele mencionou dar um passo pra trás, quebrou todo o encanto do "eu te amo" e foi enorme minha vontade de começar a chorar, mas, graças a Deus, consegui me controlar pra não derrubar uma lágrima sequer. Ele continuou:

             

— Não me olha assim, dear. Sei que de cara parece ruim, mas seria uma medida de emergência pra gente não continuar brigando e um magoando o outro. Do jeito que está, corremos o risco de chegar ao ponto em que brigaremos de vez e não nos falaremos mais. Eu não quero você fora da minha vida de jeito nenhum! Por isso a sugestão da gente sacrificar certos aspectos da nossa relação, tirar a parte "colorida" da nossa amizade, em prol de um bem maior, a nossa amizade em si! Entende?

             

Engoli o choro mais uma vez. Meus olhos estavam ardendo; minha garganta, seca; meu estômago, revirando. Abri a boca e senti as palavras ficarem presas porque não saiu som algum. Meu peito estava pesado, ou aquela sensação seria a do meu coração apertando, se encolhendo, recuando, batendo em retirada, envergonhado com a derrota?

             

Eu não havia dito "eu te amo" de volta porque eu não sabia se era exagero da nossa parte acreditar que já nos amávamos em tão poucos meses. Mas eu queria ter dito "Eu tô apaixonada por você e sei que o nosso conto de fadas está parecendo uma cena de pós-guerra agora. Muito disso é culpa da minha incompreensão, do meu egoísmo, da saudade que sinto de estar com você ou de apenas falar com você e que me faz te questionar e fazer cobranças. Confesso que não sei como ser uma pessoa melhor, mas quero continuar tentando. Não desista de nós..." Abri a boca mais uma vez e não consegui falar nada disso. Só consegui mesmo dizer que eu não via um retrocesso na nossa relação como solução.   

             

— Não se trata de retrocesso, Jules.— ele retrucou.

             

— É exatamente disso que se trata dar um passo pra trás! Desculpa, mas eu não posso ser só sua amiga estando emocionalmente envolvida como estou! Se você conseguiria, parabéns pra você, mas nós dois somos diferentes, você sabe ser desapegado, deve saber melhor que eu como separar as coisas, mas essa não sou eu. Quando aceitei uma relação tão pós-moderna como a nossa, acabei concordando com uma relação aberta, e eu não sou mulher de relação aberta. Não vou cometer o mesmo erro duas vezes. Não vou concordar com algo que me obriga a ignorar os meus sentimentos por você e a reprimir minha atração física por você! Não vou me anular dessa forma que você está me pedindo, mesmo que o meu não signifique te perder.  Já tentei ser desapegada e nem nisso fui muito bem-sucedida. Mas ser só amiga é um fracasso óbvio desde já. Ou a gente segue com esse namoro que "não é um namoro, mas é quase isso", ou a gente termina tudo, encerra o contato entre nós e cada um segue a sua vida. Não tô pedindo pra você me apresentar pra sua família nem pra você entrar nas suas redes sociais e anunciar que está em um relacionamento comigo. Não tô sugerindo que você deixe de ser o espírito livre que é tão importante pra você continuar sendo. Só estou pedindo que você se decida entre a gente terminar de vez ou continuar nossa relação sem dar passos pra trás. Se você decidir continuar, Richie, a gente pensa em outras formas de lidar com nossas questões. Podemos, por exemplo, ser mais auto-vigilantes com os nossos impulsos, tipo, eu tentar ficar mais atenta pra não te responder em tom de reclamação e cobrança, e você ficar atento pra não me dar um fora ou ser bizarramente frio quando eu estiver sendo carinhosa, sabe.

             

Terminei de falar e fiquei aguardando uma resposta, mas ele, por sua vez, olhava pra mim, pro chão, pra mim de novo... Estava com cara de aflito, como se não tivesse se decidido ainda. Ao invés de continuar esperando, voltei a falar, porque é isso que pessoas ansiosas fazem, não é?

             

— Você sugeriu uma solução. Eu já deixei claro que prefiro terminar do que ser apenas sua amiga. Agora, Richie, é a sua vez de escolher entre terminar ou... — fui interrompida. Ele me agarrou.

             

Eu retribuí o beijo, mas não durou muito porque o interrompi. Eu precisava ter uma resposta.    

             

— Qual é a sua decisão, Richard? Eu não quero beijá-lo sem saber a resposta...

            

 — Você acha mesmo que eu teria te beijado se a decisão fosse terminar com você!?

            

Arregalei os olhos com um sorriso enorme estampando minha cara. Juro que pensei que o beijo era de despedida. Ele olhou nos meus olhos e acariciou o meu rosto, e pegou umas mechas soltas do meu cabelo levando-as pra trás da minha orelha. Já estávamos nos beijando intensamente, loucamente, quando ele, sem parar o beijo, foi conduzindo meu corpo a deitar-se no sofá. Ele acompanhou o movimento e logo seu corpo estava deitado sobre o meu. A gente queria tirar nossas roupas, mas a gente também não queria parar de se beijar pra isso. Puxei minha blusa pra cima e, ao tentar passá-la pela minha cabeça, a blusa entrou no meio de nós, ficando entre a boca dele e a minha, e ele de repente se viu beijando um pedaço de pano ao invés dos meus lábios. Aí a gente começou a rir, o que foi ótimo, porque nos deu o tempo que precisávamos para tirar nossas roupas e voltarmos a nos beijar.

              

Mais tarde, quando íamos nos despedir, - já estávamos no portão da minha casa -, ele me olhou fixamente em silêncio e sorriu.  

             

— Que foi, seu doido? — já perguntei rindo.

             

Ele me respondeu sério:

             

Good night, girlfriend. (Boa noite, namorada.)

             

Good night, boyfriend. (Boa noite, namorado.)

             

Well... I'm a boy and I'm a friend. So yeah, I'm your boyfriend. (Bem... Sou um cara e sou um amigo. Então sim, sou seu namorado.) — e piscou pra mim, arrancando uma risadinha minha.

             

Como de costume, o esperei subir a minha rua até desaparecer do meu campo de visão. Voltei pra dentro de casa flutuando de tão feliz e, cantarolando "State of Grace" da Taylor Swift, fui arrumar a sala antes que meus pais chegassem.


Motivo #07Ricardo conseguiu me fazer cair na sua lábia de que uma relação sem rótulos era mais evoluída, mais saudável, até mesmo subversiva às coerções sociais, quando, na verdade, ele camuflava o quão tóxica era nossa relação ao me manipular para acreditar que suas intenções eram boas e que meus sentimentos eram sim por ele correspondidos. Ele se utilizou de todos aqueles comentários que chamei de "semeadores da esperança", bem como de uma declaração de "eu te amo", como estratégias maquiavélicas disfarçadas de momentos especiais. Dói muito relembrar todos esses momentos bons que no fim das contas estavam envenenados por mentiras e que foram encenados com uma reciprocidade de sentimentos que não existia da parte dele. Me pergunto se até o carinho nos gestos era fake também.

             

Lembram que, um minuto antes de nos beijarmos pela primeira vez na vida, "Richard" argumentou que o Daniel estava errado porque traiu a namorada, ao passo que nós dois éramos duas pessoas solteiras e não devíamos nada a ninguém!? Mentira! Ricardo não era solteiro coisa nenhuma! Enquanto o "Richard" bostejava para mim, durante SEIS meses, sobre ser um espírito livre, avesso a relações tradicionais e monogâmicas, sobre não querer me apresentar pra sua família, muito menos postar foto nossa juntos nas redes sociais, a verdade é que Ricardo Ernesto não era solteiro quando me conheceu. Ele já namorava uma garota desde 2016 e com ela continuou namorando depois que eu descobri toda a farsa e o desmascarei.   

             

Olha que engraçado! Ele condenou o comportamento do amigo por trair a namorada que residia em outro estado, no entanto, ele próprio tinha um namoro que, embora fosse à distância, era daquele tipo que ele dizia detestar, o mais tradicional possível, com uma coreana que mora do outro lado do mundo. Demasiada hipocrisia. Além de mentiroso e mau caráter, é um hipócrita sem vergonha.


Motivo #08: O "espírito livre que não se amarra a ninguém" tem uma namorada oficial com quem está há três anos num relacionamento monogâmico, quero dizer, num relacionamento que ele diz pra ela que é monogâmico porque, na realidade, ele é o fiel de Taubaté. Traía (e certamente continua traindo) sua namorada gringa que mora na Coréia do Sul, quem ele encontra pessoalmente apenas uma ou duas vezes por ano, que se chama Chin-Sun e que realmente não fazia ideia de que o seu namoradinho não é o santo que ela imaginava que fosse. Aliás, a família do Ricardo a conhece, sabe que ela é namorada dele. Ricardo Ernesto até mesmo deixou seus pais — e os pais dela também! —acreditarem que ele, um dia, vai de fato se casar com essa garota.

             

Que pena que quando eu fiz a máscara dele cair até mesmo pra essa tal de Chin-Sun, ao lhe enviar fotos minhas com ele e prints de conversas nossas que comprovavam a infidelidade dele, ela acabou se revelando adepta da filosofia do "Lavou, tá novo!", porque, acreditem se quiser, ela o perdoou. E quando descobriu que eu não fui a única com quem ele a traiu, ela o perdoou mais uma vez. Lembram que comecei esse capítulo dizendo que talvez vocês achassem no final que eu ganho de vocês no quesito "trouxice"? Bem, talvez a coreana seja a grande vencedora. Talvez não faça sentido fazer disso uma competição. Minha única certeza é que eu e ela temos algo em comum: fomos mais iludidas do que abelha em flor de plástico!


Foto tirada no "Museum of Broken Relationships" em Los Angeles.

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